A
herança kantiana
Após a solução kantiana para o
problema da metafísica, esta não mais retornou à antiga concepção de
conhecimento da realidade em si, mas caminhou no sentido inaugurado por Kant,
conhecido como idealismo.
Por que idealismo?
Vimos que a Filosofia (na
Antiguidade, na Idade Média e na Modernidade) era realista, isto é, partia da
afirmação de que a realidade ou o Ser existem em si mesmos e que, enquanto
tais, podem ser conhecidos pela razão humana. Vimos também que o realismo
clássico ou moderno introduzira uma mudança no realismo antigo e medieval, pois
exigira que, antes de iniciar uma investigação metafísica da realidade, fosse
respondida a questão: “Podemos conhecer a realidade?”.
Em outras palavras, exigira que a
teoria do conhecimento antecedesse a metafísica. Vimos, a seguir, o resultado
dessa exigência: David Hume demonstrando que o conteúdo da metafísica são
apenas nossas ideias e que estas são nomes gerais atribuídos aos hábitos
psicológicos de associar os dados da sensação e da percepção. O sentimento
subjetivo ou psicológico de regularidade, constância e frequência de nossas
impressões são transformados em entidades metafísicas que, na verdade, não
existem.
Kant completou a trajetória
moderna, mas com duas inovações fundamentais: em primeiro lugar, transformou a
própria teoria do conhecimento em metafísica, ao afirmar que esta investiga as
condições gerais da objetividade, isto é, do conhecimento universal e
necessário dos fenômenos e, em segundo lugar, demonstrou que o sujeito do conhecimento
não é, como pensara Hume, o sujeito psicológico individual, mas uma
estrutura universal, idêntica para todos os seres humanos em todos os tempos e
lugares, e que é a razão, como faculdade a priori de conhecer ou o
Sujeito Transcendental.
Nunca saberemos o que é e como é
a realidade em si mesma, separada e independente de nós. Conhecemos apenas a
realidade como fenômeno, isto é, organizada pelo sujeito do conhecimento
segundo as formas do espaço e do tempo e segundo os conceitos do entendimento.
A realidade conhecível e conhecida é aquela posta pela objetividade
estabelecida pela razão ou pelo Sujeito Transcendental.
O que
é a objetividade? O que é fenômeno? O que é a realidade enquanto objeto ou
fenômeno? É a realidade estruturada pelas ideias produzidas pelo sujeito. Por
isso a metafísica se torna idealista ou um idealismo. O conhecimento não
vem das coisas para a consciência, mas vem das ideias da consciência para as
coisas.
A
história da metafísica foi sempre o trabalho filosófico para responder a duas perguntas:
O que é aquilo que existe? Como podemos conhecer aquilo que existe? Duas
foram as respostas: a realista, cujo exemplo mais acabado foi a metafísica de
Aristóteles ou o estudo do “Ser enquanto Ser”; e a idealista, cujo exemplo mais
acabado foi a crítica da razão teórica e prática de Kant.
A
contribuição da fenomenologia de Husserl
Segundo
Husserl, a fenomenologia está encarregada, entre outras, de três tarefas
principais:
separar psicologia e filosofia, manter o privilégio do sujeito do
conhecimento
ou consciência reflexiva diante dos objetos e ampliar/renovar o
conceito
de fenômeno.
Separação entre psicologia e filosofia
No
final do século XIX e no início do século XX, muitos pensadores julgaram que a
psicologia tomaria o lugar da teoria do conhecimento e da lógica e, portanto,
da Filosofia. Na opinião deles, a ciência positiva do psiquismo seria suficiente
para explicar as causas das formas de conhecimento e das demonstrações, sem
necessidade de investigações filosóficas.
Husserl,
porém, veio demonstrar o equívoco de tal opinião.
A
psicologia, diz ele, como toda e qualquer ciência, estuda e explica fatos observáveis,
mas não pode oferecer os fundamentos de tais estudos e explicações, pois esses
cabem à Filosofia.
A
psicologia explica, por meio de observações e de relações causais, fatos mentais
e comportamentais, isto é, os mecanismos físicos, fisiológicos e psíquicos que
nos fazem ter sensações, percepções, lembranças, pensamentos ou que nos
permitem realizar ações pelas quais nos adaptamos ao meio ambiente. A Filosofia,
porém, difere da psicologia, porque investiga o que é o físico, o fisiológico,
o psíquico, o comportamental. Em outras palavras, não explica fatos mentais
e de comportamento, mas descreve as essências da vida física e psíquica.
Tomemos
um exemplo.
Quando
um psicólogo estuda a percepção, procura distinguir dois tipos de fatos: os
fatos externos observáveis, a que dá o nome de estímulos (luz, calor, cor, forma
dos objetos, distância, etc.), e os fatos internos indiretamente observáveis, a
que dá o nome de respostas. Divide o fato perceptivo em estímulos externos e internos
(o que acontece no sistema nervoso e no cérebro) e em respostas internas e
externas (as operações do sistema nervoso e o ato sensorial de sentir ou perceber
alguma coisa).
Quando
um filósofo estuda a percepção, procede de modo muito diferente.
Começa
perguntando: “O que é a percepção?”, diferentemente do psicólogo, que parte da
pergunta: “Como acontece uma percepção?”.
O que
é a percepção? Antes de tudo, é um modo de nossa consciência relacionar-se com
o mundo exterior pela mediação de nosso corpo. Em segundo lugar, é um certo
modo de a consciência relacionar-se com as coisas, quando as toma como realidades
quantitativas (cor, sabor, odor, tamanho, forma, distâncias, agradáveis, desagradáveis,
dotadas de fisionomia e de sentido, belas, feias, diferentes umas das outras,
partes de uma paisagem, etc.). A percepção é uma vivência. Em terceiro
lugar, essa vivência é uma forma de conhecimento dotada de estrutura: há o ato
de perceber (pela consciência) e há o correlato percebido (a coisa externa);
a característica principal do percebido é a de oferecer-se por faces, por perfis
ou perspectivas, como algo interminável, que nossos sentidos nunca podem
apanhar de uma só vez e de modo total.
O que
é a percepção? Ou, em outras palavras, qual é a essência da percepção? É
uma vivência da consciência, um ato, cujo correlato são qualidades percebidas pela
mediação de nosso corpo; é um modo de estarmos no mundo e de nos relacionarmos
com a presença das coisas diante de nós, é um modo diferente, por exemplo, da
vivência imaginativa, da vivência reflexiva, etc.
A
psicologia nos diz que há percepção e nos oferece uma explicação causal
para
ela,
mas não pode nos dizer o que é a percepção, pois para isso precisaria
conhecer a essência da
própria consciência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário