Três
concepções filosóficas da liberdade
(segundo Marilena Chauí, em Convite à Filosofia)
Na história das ideias
ocidentais, necessidade e contingência foram representadas por figuras míticas.
A primeira, pelas três Parcas ou Moiras, representando a fatalidade, isto é, o
destino inelutável de cada um de nós, do nascimento à morte.
Uma das Parcas ou Moiras era
representada fiando o fio de nossa vida, enquanto a outra o tecia e a última o
cortava, simbolizando nossa morte. A contingência (ou o acaso) era representada
pela Fortuna, mulher volúvel e caprichosa, que trazia nas mãos uma roda,
fazendo-a girar de tal modo que quem estivesse no alto (a boa fortuna ou boa
sorte) caísse (infortúnio ou má sorte) e quem estivesse embaixo fosse elevado.
Inconstante, incerta e cega, a roda da Fortuna era a pura sorte, boa ou má,
contra a qual nada se poderia fazer, como na música de Chico Buarque: “Eis que
chega a roda-viva, levando a saudade pra lá”.
As teorias éticas procuraram
sempre enfrentar o duplo problema da necessidade e da contingência, definindo o
campo da liberdade possível.
A
primeira grande teoria filosófica da liberdade é exposta por Aristóteles em sua
obra Ética a Nicômaco e, com variantes, permanece através dos séculos, chegando
até o século XX, quando foi retomada por Sartre. Nessa concepção, a liberdade
se opõe ao que é condicionado externamente (necessidade) e ao que acontece sem
escolha deliberada (contingência).
Diz
Aristóteles que é livre aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou não
agir, isto é, aquele que é causa interna de sua ação ou da decisão de não agir.
A
liberdade é concebida como o poder pleno e incondicional da vontade para determinar
a si mesma ou para ser autodeterminada. É pensada, também, como ausência de
constrangimentos externos e internos, isto é, como uma capacidade que não
encontra obstáculos para se realizar, nem é forçada por coisa alguma para agir.
Trata-se da espontaneidade plena do agente, que dá a si mesmo os
motivos
e os fins de sua ação, sem ser constrangido ou forçado por nada e por ninguém.
Assim,
na concepção aristotélica, a liberdade é o princípio para escolher entre alternativas
possíveis, realizando-se como decisão e ato voluntário.
Contrariamente
ao necessário ou à necessidade, sob a qual o agente sofre a ação de uma causa
externa que o obriga a agir sempre de uma determinada maneira, no ato
voluntário livre o agente é causa de si, isto é, causa integral de sua ação.
Sem
dúvida, poder-se-ia dizer que a vontade livre é determinada pela razão ou pela
inteligência e, nesse caso, seria preciso admitir que não é causa de si ou incondicionada,
mas que é causada pelo raciocínio ou pelo pensamento.
No
entanto, como disseram os filósofos posteriores a Aristóteles, a inteligência inclina
a vontade numa certa direção, mas não a obriga nem a constrange, tanto assim
que podemos agir na direção contrária à indicada pela inteligência ou razão. É
por ser livre e incondicionada que a vontade pode seguir ou não os conselhos da
consciência. A liberdade será ética quando o exercício da vontade
estiver
em harmonia com a direção apontada pela razão.
Sartre
levou essa concepção ao ponto limite. Para ele, a liberdade é a escolha incondicional
que o próprio homem faz de seu ser e de seu mundo. Quando julgamos estar sob o
poder de forças externas mais poderosas do que nossa vontade, esse julgamento é
uma decisão livre, pois outros homens, nas mesmas circunstâncias, não se
curvaram nem se resignaram.
Em
outras palavras, conformar-se ou resignar-se é uma decisão livre, tanto quanto
não se resignar nem se conformar, lutando contra as circunstâncias.
Quando
dizemos estar fatigados, a fadiga é uma decisão nossa. Quando dizemos estar
enfraquecidos, a fraqueza é uma decisão nossa. Quando dizemos não ter o que
fazer, o abandono é uma decisão nossa. Ceder tanto quanto não ceder é uma decisão
nossa.
Por
isso, Sartre afirma que estamos condenados à liberdade. É ela que define
a humanidade dos humanos, sem escapatória. É essa ideia que encontramos no poema
de Carlos Drummond, quando afirma que somos maiores do que o “vasto mundo”. É
ela também que se encontra no poema de Vicente de Carvalho, quando nos diz que
a felicidade “está sempre apenas onde a pomos” e “nunca a
pomos
onde nós estamos”. Somos agentes livres tanto para ter quanto para perder a
felicidade.
A segunda concepção da liberdade foi,
inicialmente, desenvolvida por uma escola de Filosofia do período helenístico,
o estoicismo, ressurgindo no século XVII com o filósofo Espinosa e, no século
XIX, com Hegel e Marx. Eles conservam a idéia aristotélica de que a liberdade é
a autodeterminação ou ser causa de si. Conservam também a idéia de que é
livre aquele que age sem ser forçado nem constrangido por nada ou por ninguém
e, portanto, age movido espontaneamente por uma força interna própria. No
entanto, diferentemente de Aristóteles e de Sartre, não colocam a liberdade no
ato de escolha realizado pela vontade individual, mas na atividade do todo, do
qual os indivíduos são partes.
O todo
ou a totalidade pode ser a Natureza – como para os estóicos e Espinosa -,ou a
Cultura – como para Hegel – ou, enfim, uma formação histórico-social –como para
Marx. Em qualquer dos casos, é a totalidade que age ou atua segundo seus
próprios princípios, dando a si mesma suas leis, suas regras, suas normas.
Essa
totalidade é livre em si mesma porque nada a força ou a obriga do exterior, e
por sua liberdade instaura leis e normas necessárias para suas partes (os indivíduos).
Em outras palavras, a liberdade, agora, não é um poder individual incondicionado
para escolher – a Natureza não escolhe, a Cultura não escolhe, uma formação
social não escolhe -, mas é o poder do todo para agir em conformidade consigo
mesmo, sendo necessariamente o que é e fazendo necessariamente o que faz.
Como
podemos observar, essa concepção não mantém a oposição entre liberdade e
necessidade, mas afirma que a necessidade (as leis da Natureza, as normas e regras
da Cultura, as leis da História) é a maneira pela qual a liberdade do todo se manifesta.
Em outras palavras, a totalidade é livre porque se põe a si mesma na existência
e define por si mesma as leis e as regras de sua atividade; e é necessária
porque tais leis e regras exprimem necessariamente o que ela é e faz.
Liberdade
não é escolher e deliberar, mas agir ou fazer alguma coisa em conformidade com
a natureza do agente que, no caso, é a totalidade. O que é, então, a liberdade
humana?
São duas as respostas a
essa questão:
1. a
primeira afirma que o todo é racional e que suas partes também o são, sendo livres
quando agirem em conformidade com as leis do todo, para o bem da totalidade;
2. a
segunda afirma que as partes são de mesma essência que o todo e, portanto, são
racionais e livres como ele, dotadas de força interior para agir por si mesmas,
de sorte que a liberdade é tomar parte ativa na atividade do todo. Tomar
parte ativa significa, por um lado, conhecer as condições estabelecidas pelo
todo, conhecer suas causas e o modo como determinam nossas ações, e, por outro
lado, graças a tal conhecimento, não ser um joguete das condições e causas que
atuam sobre nós, mas agir sobre elas também. Não somos livres para escolher
tudo, mas o somos para fazer tudo quanto esteja de acordo com nosso ser e com
nossa capacidade de agir, graças ao conhecimento que possuímos das
circunstâncias em que vamos agir.
Além
da concepção de tipo aristotélico-sartreano e da concepção de tipo
estóicohegeliano, existe ainda uma terceira concepção que procura unir
elementos das duas anteriores. Afirma, como a segunda, que não somos um poder
incondicional de escolha de quaisquer possíveis, mas que nossas escolhas são
condicionadas pelas circunstâncias naturais, psíquicas, culturais e históricas
em que vivemos, isto é, pela totalidade natural e histórica em que estamos
situados. Afirma, como
a
primeira, que a liberdade é um ato de decisão e escolha entre vários possíveis.
Todavia,
não se trata da liberdade de querer alguma coisa e sim de fazer alguma
coisa, distinção feita por Espinosa e Hobbes, no século XVII, e retomada, no século
XVIII, por Voltaire, ao dizerem que somos livres para fazer alguma coisa quando
temos o poder para fazê-la.
Essa
terceira concepção da liberdade introduz a noção de possibilidade objetiva.
O
possível não é apenas alguma coisa sentida ou percebida subjetivamente por nós,
mas é também e sobretudo alguma coisa inscrita no coração da necessidade, indicando
que o curso de uma situação pode ser mudado por nós, em certas direções e sob
certas condições. A liberdade é a capacidade para perceber tais possibilidades
e o poder para realizar aquelas ações que mudam o curso das
coisas,
dando-lhe outra direção ou outro sentido.
Na
verdade, a não ser aqueles filósofos que afirmaram a liberdade como um poder
absolutamente incondicional da vontade, em quaisquer circunstâncias (como o
fizeram, por razões diferentes, Kant e Sartre), os demais, nas três concepções
apresentadas, sempre levaram em conta a tensão entre nossa liberdade e
as condições – naturais, culturais, psíquicas – que nos determinam.
As
discussões sobre as paixões, os interesses, as circunstâncias
histórico-sociais, as condições naturais sempre estiveram presentes na ética e
por isso uma ideia como a de possibilidade objetiva sempre esteve pressuposta
ou implícita nas teorias sobre a liberdade.
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